sábado, 2 de janeiro de 2010

Morin assistiu à "Querida Wendy"? Von Trier e Vinterberg leram Morin?


Este texto foi escrito dia 25/03/2006.


O final de Querida Wendy não é redentor como o final de Dogville, apesar de toda a violência no clímax. Ambos os lados de Querida Wendy são extremamente parecidos. O poder já está nas mãos de cada um, sua arma. A diferença é que alguns têm o "direito" de ter o poder, outros, não.

Os adolescentes dão novos ares à sua vida insegura e marginal ao tratarem suas armas de um modo amoroso e até sexual. Embora o sexual aqui seja bem ambíguo, ao tomar a "arma" ora como alguém, uma pessoa a ser amada, ora como um mero objeto sexual, objeto possuído.

Vemos, durante o filme, o crescimento da auto-estima de cada um deles, assim como seus potenciais e desejos que vão tornando-se reais. Um a um, inclusive através do final pouco redentor.

Se vemos o filme como crítica (ao belicismo norte-americano, ao cinema americano), é porque ele é direto e absurdo. Não levanta uma bandeira. As armas estão bem colocadas no filme, só esse instrumento poderia trazer a auto-estima dos jovens e levá-los à morte. Com qualquer outro objeto, sua auto-estima poderia até ser recuperada, mas eles não morreriam com fama, glória e prazer. Sim, prazer. Esse é um dos temas do filme. Aquiles, à sua época não fora advertido dessa terceira possibilidade na morte abreviada. No filme, são jovens que morrem cedo, com fama, glória e prazer.

É um filme esquisito. A gente sai ambígua do cinema. Eu, em particular, fui assistir por puro acaso. Entrei no cinema sem nunca ter lido sobre o filme, sem nem saber do que se tratava. O filme é chocante e absurdo. E absurdamente divertido e tenso, leve e pesado. Ainda não decidi onde mais estava a violência do filme (afora a violência explícita das mortes etc e tals).


Além disso, o elemento "extra" ao clã formado pelos adolescentes - que criaram toda uma "ciência" no uso das armas - os considera loucos, tem uma relação muito mais "prática" com a arma, acaba participando do grupo por uma contingência, embora não os aceitasse, e, ao final, faz exatamente o que se esperaria de um dos membros. Esquisito? É sim.

Acabei de ler um capítulo do volume 1 do livro de Edgar Morin, "O Espírito do Tempo". Não pude deixar de ver associações com o filme. No estilo da minha amiga Luciene, coloco as citações do texto de Morin:

"Hollywood já proclamou sua receita há muito tempo: a girl and a gun. Uma moça e um revólver. O erotismo, o amor, a felicidade, de um lado. De outro, a agressão, o homicídio, a aventura. Esses dois temas emaranhados, uns, portadores dos valores femininos, outros, dos valores viris, são, contudo, valores diferentes. Os temas aventurosos e homicidas não podem realizar-se na vida; eles tendem a se distribuir identificativamente.
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"Por um lado, irrigação da vida cotidiana, por outro, irrigação da vida onírica. Dois sóis gêmeos efetuam uma rotação, um sobre o outro. Um aquece com seus raios os fermentos que se desenvolvem na sociedade, o outro dá uma plenitude imaginária a tudo que falta na sociedade. As louváveis aventuras cinematográficas respondem à mediocridade das existências reais: os espectadores são as sombras cinzentas dos espectros deslumbrantes que cavalgam as imagens.
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"A vida nãio é apenas mais intensa na cultura de massa. Ela é outra. Nossas vidas cotidianas estão submetidas à lei. Nossos instintos são reprimidos. Nossos desejos são censurados. Nossos medos são camuflados, adormecidos. Mas a vida nos filmes, dos romances, do sensacionalismo é aquela em que a lei é enfrentada, dominada ou ignorada, em que o desejo logo se torna amor vitorioso, em que os instintos se tornam violências, golpes, homicídios, em que os medos se tornam suspenses, angústias. É a vida que conhece a liberdade, não a liberdade política, mas a liberdade antropológica, na qual o homem não está mais à mercê da norma social: a lei.
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"A liberdade infra se exerce abaixo das leis, nos "submundos" da sociedade, junto aos vagabundos, ladrões, gangsters. Esse mundo da noite é, talvez, um dos mais significativos da cultura de massa. Porque o homem civilizado, regulamentado, burocratizado, o homem que obedece aos agentes, aos editais de interdição, aos "bata antes de entrar" aos "da parte de quem", se libera projetivamente na imagem daquele que ousa matar, que ousa obedecer à sua própria violência.

"Ao mesmo tempo, a gang exerce uma fascinação particular, porque responde a estruturas afetivas elementares do espírito humano: baseia-se na participação comunitária do grupo, na solidariedade coletiva, na fidelidade pessoal, na agressividade em relação a tudo que é estrangeiro na vindita (vingança em relação ao outro e responsabilidade coletiva dos seus).
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"A gang é como o clã arcaico, mas purificada de todo e qualquer sistema tradicional de prescrições e de interdições, é um clã em estado nascente. É o sonho maldito e comunitário do indivíduo ao mesmo tempo reprimido e atomizado, o contrato social da alma obscura dos homens sujeitos às regras abstratas e coercitivas. É por causa disso, aliás, que os jovens, tanto nos subúrbios, como os dos bairros elegantes ... tendem a constituir "bandos", clãs-gangs elementares, para viver conforme o estado natural da afetividade.
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"O tema da liberdade se apresenta através das janelas diariamente abertas da tela, do vídeo, do jornal, como evasão onírica ou mítica fora do mundo civilizado, fechado, burocratizado... o tema da liberdade se inscreve no grande conflito entre o homem e o interdito. Qualquer que seja a saída desse conflito, e mesmo que o homem finalmente seja vencido ou domesticado pela lei, a revolta antropológica contra a regra social - o conflito fundamental do indivíduo e da sociedade - é colocada, e as energias do homem são empregadas nesse combate.
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"Bofetadas, golpes, tumultos, batalhas, guerras, explosões, incêndios, erupções, enchentes assaltam sem cessar os homens pacíficos em nossas cidades, como se o excesso de violência consumido pelo espírito compensasse uma insuficiência de violência vivida. Fazemos em toda segurança a experiência da insegurança, isto é, ainda da liberdade, pois "o homem livre é necessariamente sem segurança", como disse Eric Fromm. Fazemos pacificamente a experiência da guerra. Fazemos passivamente a experiência do homicídio. Fazemos inofensivamente a experiência da morte. É preciso insistir nesse último ponto: não é só pela necessidade de fazer a experiência do homicídio que existe a vilência, é também pela necessidade de viver a morte - de conhecê-la.
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"Um problema central permanece: há um fundo de violência no ser humano que precede nossa civilização, qualquer civilização, e que não pode ser reduzido definitivamente por nenhum dos modos atualmente conhecidos pela civilização. A civilização é uma fina película que pode solidificar-se e conter o fogo central, mas sem apagá-lo. A civilização do conrorto pacífico, da vida sem riscos, da felicidade que quer ignorar a morte será que constitui uma crosta cada vez mais sólida abaixo das energias dementes da espécie? Aqui a resposta ainda é dupla. Se, de fato, a superfície se endurece e torna a se fechar sobre o fogo central, então a pressão interna de decuplica... todas as experiências nos provam que ninguém está definitivamente civilizado."


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