domingo, 3 de janeiro de 2010

Dogville

Este texto é ainda mais antigo. Também republicado na mesma data de A Vila, porque resgatei do outro multiply.

Sugiro observar com cuidado as duas primeiras semanas de Grace em Dogville e perceber as advertências dadas a ela por Chuck e, sobretudo, por Jason.



Análise do nome de alguns personagens:

Moses. Não é curioso que a vila se chame "Dog-ville"? E que o único cão seja Moisés? E que Moisés não consiga chegar à terra prometida e, neste filme, seja, talvez obrigado a reconstitui-la, absolutamente só? Não é curioso que o único personagem sem pecado seja também o único que resista à cidade (aos 40 anos de peregrinação, que na narrativa bíblica ele não resiste)? Também que seja o único testemunho da cidade?

Thomas Edison Jr. Não é curioso que o "pensador" da cidade seja homônimo do "inventor" da lâmpada? Que luz ele traz à cidade? Não é curioso que a sua tentativa de iluminar seja cada vez mais encoberta por trevas? Um iluminista às avessas, cujos escritos se limitam a pontos de interrogações e alguns monossílabos?


Grace. Não é curioso que Tom considere Grace, quando chega, uma dádiva (gift)? Que ela seja, entre todos, a mais bela, a mais solícita, a mais limpa? Graça, que espalharia alegria na natureza e nos homens. O que Grace ainda não sabe é que sua auto-imposição educativa, seu próprio teste, irá testar todos ali.

Achilles. Não é curioso que o herói grego, conhecido por invencível, com apenas um ponto frágil, seja exatamente o mais indefeso dos personagens? Se o bebê seria um Aquiles, imune à degradação humana totalmente presente em Dogville – no mundo – não há como saber. Seus irmãos mais velhos (também heróis) não resistiram à degradação. Por certo que não eram heróis tão ilibados assim...

Jason. Não é à toa que o menino tem esse nome. Quem conhece a tragédia de Medéia sabe quem é Jasão. Jasão, confundido com um traidor do rei, foi enviado com os argonautas para conquistar o velocino de ouro na Cólquida. Lá, Medéia se apaixonou por ele, ela que era feiticeira, abriu todos os caminhos para Jasão. Sabe-se que, sem Medéia, o herói não conseguiria cumprir a missão. Jasão, interesseiro, aceitou todas as "facilidades" oferecidas pela jovem. Mas não desposou dela. Levou-a para Corinto, onde lá, ela era estrangeira. Em Corinto, o rei deu a mão de sua filha em casamento. Jasão, sentindo que seu status subiria, abandonou prontamente a amásia. Medéia vinga-se. A história é longa, mas já vimos os escrúpulos do herói Jasão. Não é curioso que Jason seja a primeira pessoa que perceba todo o processo que Grace irá passar? E que, desse modo, seja o primeiro a usufruir diretamente dessa "exploração" a que Grace se submeterá?

Grace é fugitiva de gangsters. A cidade não a acolhe por boa vontade, mas pelo que ela poderia dar em troca. Acontece, e isso é percebido de maneira meio tácita, que a moeda dos moradores é muito menos valiosa que a de Grace. Grace começa a ajudá-los com supérfluos que aos poucos tornam-se necessários. O que os habitantes de Dogville lhe davam em troca? Quase nada no início, flagelos com o passar do tempo. As pessoas de Dogville sabiam bem que não tinham nada para trocar, e a relação entre Grace e Dogville não se deu de "graça". Ao tentarem ocultar que nada tinham para trocar, ao tentarem ocultar sua fraqueza, na mesma medida em que Grace ocultava sua arrogância, seu poder, eles assimilavam o poder e a arrogância de Grace e esta se submetia cedendo, porque eles eram "apenas seres humanos". Jason já havia anunciado isso, durante as duas primeiras semanas-teste de Grace. Quando Grace, tentando tornar-se útil, fora tomar conta dos filhos de Vera. Jason diz que sabe porque ela está ali e diz que ela poderá ficar lá, enquanto fizer o que ele deseja porque assim, sua mãe ficaria feliz. O menino é o primeiro a explora-la. Chuck ainda diz que não há nada que preste naquela cidade, e, se ela gostou da cidade...

São os dois recados das duas primeiras semanas. Será que o véu da sociabilidade só cai após quinze dias? Grace julgava que tinha feito amigos até então. Aos poucos percebemos que Jason catalisa todo o ser social daquela comunidade. Ele se torna o pequeno explorador, que age em seus próprios interesses. Nada muito diferente da atitude lenta e contínua de degradação do ser mais puro em ser mais impuro. Como diminuir o valor de troca? Como fazer com que eles continuem achando que estão dando muito? Mais do que Grace merece? Tornando-se "fortes" aprofundando a "fraqueza" dela. Mas tudo "verdadeiramente" acontece.

Fraco é quem precisa do poder para se dizer forte. Mesmo quem parece estar do lado de Grace, Tomas, é fraco. "É justo alguém ser culpado por ter tido medo?" Sempre temos escolhas, é verdade. Sobre que bases fundamos nossas escolhas? Dogville mostra que o mundo funda suas bases na fraqueza. Pensei que o tema de Dogville era o poder. Sob um certo aspecto é sim. Sob o aspecto de que poder é quantum de fraqueza...

Um comentário:

Ciça Buendía disse...

Um filme que permanece nas entrelinhas do pensamento.

Sempre bom refletir a partir de ti.

Beijo!