sábado, 2 de janeiro de 2010

A Vila

Escrevi há muitos anos atrás, talvez tenha sido em 2004. Está publicado como 22/12/05, mas foi bem antes, pois eu refiz o multiply por essa época.

Atenção: esse texto contém spoilers!


"A Vila" nos deixa de algum modo incomodados. O gênero do filme, contudo, não é suspense. Nem se trata de mais uma crítica social. O que aparece, com mais relevância no filme, é a transformação simbólica, isto é, a iniciação e purificação rumo ao amadurecimento, em busca do conhecimento.Por isso, convido vocês a entrar no mundo das cores desta vila sui generis.

O amarelo que protege os habitantes da vila das criaturas ameaçadoras é um amarelo escuro, meio mostarda. Pelo simbolismo, o amarelo claro, o amarelo-ouro, o dourado, é cor que ilumina, aparentado ao sol, como o branco. Mas o amarelo do filme é fosco, escuro, como o preto. Cito do "Dicionário de Símbolos": "O amarelo emerge do negro, na simbologia chinesa, como a terra emerge das águas primevas". E também, o Zend Avesta, que tem os olhos amarelos "para melhor penetrar o segredo das trevas". Não é à toa, também, que se diz de quem tem medo: "amarelou". O medo é o artifício usado para impedir a iniciação da segunda geração. A cor amarela, em particular, é ambígua, e cabe muito bem na cor "protetora", posto que "protege" o que é o desconhecido, mas também encobre o engodo, o engano. Se amarelo é a cor da luz, é, aqui, uma luz embaciada.

O vermelho é a segunda cor mais importante da trama. É a cor proibida. E não é à toa, inclusive pelo simbolismo do vermelho. Atravessar o vermelho é atravessar para o outro mundo. O vermelho é a cor da iniciação e, no filme, era exatamente isso que era proibido aos jovens: amadurecer. Os mais velhos criaram um "mistério", as criaturas, mas não criaram ritos iniciáticos a esse mistério. Todos se submetiam no estágio mais primário, o medo. Uma vila que cresceu
infantilizada e parece desejar permanecer assim, exceto por Lucius Hunt, que insistentemente solicita autorização para ir à cidade. Mesmo Hunt, contudo, permanece infantilizado, observe-se como ele chora e assume a culpa pela invasão das criaturas em determinado momento. Além dele, vemos adultos que não cresceram, com sua expressão máxima em Noah. Mas também com a irmã de Ivy e seu futuro marido, que não suporta que lhe amassem a roupa.

É exatamente o adulto mais infantilizado que vai extrair do vermelho as maiores conseqüências. Lucius Hunt chega a dizer que Noah é puro. Se não houvesse a interdição, provavelmente não precisaríamos assistir ao rito de iniciação de Noah/Hunt/Ivy. O interdito atrai Noah e Lucius por perspectivas distintas.

O ditado popular costuma dizer que os caminhos para o conhecimento são o amor ou a dor. No filme, os dois caminhos são percorridos. Só o amor não bastaria para impulsionar a busca pela verdade. Foi precisa a dor, foi preciso estar no limiar entre a vida e a morte, para que o amor seguisse a senda aberta da dor.

O vermelho, sempre que é visto na vila, precisa ser enterrado. Não é interessante que a violência precise ser encoberta, que a dor precise ser escondida? Trata-se de um comportamento evitativo do conhecimento. Noah, Lucius e Ivy são os iniciados pelo sangue, a cor proibida, como repete Noah. O simbolismo do vermelho, no filme, foi invertido pelos mais velhos, por isso a iniciação precisa ser literal – e não simbólica. Só assim se poderia vislumbrar a liberdade. Noah, então, comete o crime, Lucius fica entre a vida e a morte, Ivy abraça Lucius
e, manchada de sangue, percorre toda a vila. Tudo se transforma após o ato trágico. O vermelho – o interdito – banhou a cidade. Só há um caminho agora, prosseguir na purificação. É isso que o mais velho percebe. Ivy fica responsável por buscar os remédios que salvariam a vida de Lucius.

Ivy empreende a "jornada do herói" e o simbolismo das cores está todo lá. No início a moça cega veste a capa amarelo-fosco e uma das primeiras coisas que lhe acontecem é cair num buraco e se sujar toda de lama escura – preta. Assustada, ela corre, se perde e, sem perceber, pára num campo cheio de flores vermelhas. É quando a criatura vermelha aparece. Ivy vai até o fundo da escuridão, mas, para sair do mal, do negro, ela precisa ser iniciada, atravessar o
vermelho, o sangue. Ivy, então, conduz a criatura à morte. Livre, ela pode agora se purificar e é o que faz, localiza o caminho indicado, tira a capa quase totalmente negra e, exceto por seus pés, ela está totalmente limpa. Neste momento, ela pode caminhar em direção à verdade, pois só a verdade pode salvar Lucius Hunt, ele que já tinha percebido que todos na vila guardavam segredos.

Quando Ivy consegue sair dos limites da vila, é que nós percebemos o tamanho da atrocidade para com aqueles jovens infantilizados. O fio de esperança está na surpresa de Ivy quando ela encontra o guarda que vai ajudá-la: "Eu não esperava por isso". Ela não esperava a bondade fora da vila. Se algo muda a partir daí? Como pensar que não?

Noah morre porque não percebe que entrar em contato com o vermelho é purificar-se, morre ao se fixar no pretensamente divino: ele sai de si, assume o mistério, perde sua identidade, não transcende – não há transcendência. Noah morre duas vezes: a primeira como humano e a segunda como pretensa criatura dos mistérios.

Ivy volta à vila renovada, transformada. Ela não usa a capa "protetora" no caminho de volta; retorna à vila tão limpa e clara como quando chegou à cidade. Ela sentiu a verdade.

Lucius só poderia ser salvo pela verdade. Ele é a materialização da jornada de Ivy, pois está entre a vida e a morte. O que morre aí? Acho que não preciso dizer. Há a morte para que outro Lucius Hunt possa viver. Assim como é outra Ivy Walker que retorna da "jornada do herói".

"A Vila" é um filme iniciático, da mais profunda transformação. Iludem-se os mais velhos que pensam que poderão manter a nova geração na ignorância após a jornada de Ivy e Lucius.

4 comentários:

Rebeca Oliveira Duarte disse...

Puxa...acho que só consigo ver esse filme ao me recolher na Lua Nova!

Martha disse...

Rebeca, que bom vê-la por aqui. Então você nao viu ainda esse filme?
De fato, na época, a propaganda fazia crer que era apenas mais um filme de suspense.
Interessante que muito tempo depois que assisti no cimema, fui locá-lo e, nos extras, o diretor fala explicitamente da importância das cores.

Joana Pereira disse...

Foi um dos filmes que mais me marcou!
profundamente subjetivo, nos aguça a um senso crítico sobre nós mesmo,quem somos?, por quê somos assim?,sabemos realmente sobre nós mesmos,ou somos projeções daquilo que queríamos que fossemos..."nos leva a uma crítica além daquela que já somos"

Anônimo disse...

Eu já assisti esse filme. Azar de quem não assistiu pois é um dos melhores filmes que já ví