domingo, 4 de abril de 2010

O olhar astrológico ainda é encantado - Lunik 9

Lunik 9 foi composta por Gilberto Gil em 1967, momento histórico em que se vivia plenamente a disputa pelo solo lunar. Disputa da guerra fria, que envolvia conflitos ideológicos, mas, sobretudo, predomínio de uma ciência exploratória em que a beleza da poesia parecia perder pouco a pouco a vez. Apenas parecia, porque este tipo de evento também servia para criações como Lunik 9.

Fred Góes comenta a música:  Em Lunik-9 - aparentemente um alerta a ingênua tríade "poetas, seresteiros, namorados" - compõe um veemente manifesto político a respeito das conquistas espaciais, faca de dois gumes dos tempos modernos, delineando em sua bem inspirada letra a guerra fria entre nações pela posse do desconhecido, já que o conhecido está inteiramente apossado: "Guerra diferente / Das tradicionais / Guerra de astronautas / Nos espaços siderais".

Lunik 9 faz parte do álbum Louvação, em que está presente uma música bastante conhecida, Procissão, que também fala das coisas do céu: Olha / Lá vai passando a procissão / Se arrastando que nem cobra pelo chão / As pesoas que nela vão passando / Acreditam nas coisas lá do céu / As mulheres cantando tiram versos / E os homens escutando tiram o chapéu.

Como alerta Fred Góes, Gil está atento àquela época às coisas do céu, tanto no sentido poético, quanto no sentido religioso, além de denunciar o sentido astronômico-científico-exploratório-conquistador. 



Luniks são sondas ou módulos lunares soviéticos, lançadas a partir de 1959. A Lunik 9, em 1966, foi a que primeiro pousou na Lua, dentre as Luniks, que, até então eram de sobrevôo ou de impacto. Aqui vemos uma lista das sondas interplanetárias e suas missões.

A canção de Gil, escrita no ano seguinte ao pouso da Lunik 9 na Lua, antes da chegada do homem na Lua, hesita entre a exploração e o encantamento. Vamos pensar a letra?

Poetas, seresteiros, namorados, correi
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar

Momento histórico
Simples resultado
Do desenvolvimento da ciência viva
Afirmação do homem
Normal, gradativa
Sobre o universo natural

Sei lá que mais

Ah, sim!
Os místicos também
Profetizando em tudo o fim do mundo
E em tudo o início dos tempos do além
Em cada consciência
Em todos os confins
Da nova guerra ouvem-se os clarins

Guerra diferente das tradicionais
Guerra de astronautas nos espaços siderais
E tudo isso em meio às discussões
Muitos palpites, mil opiniões
Um fato só já existe
Que ninguém pode negar
7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já!

Lá se foi o homem
Conquistar os mundos

Lá se foi
Lá se foi buscando
A esperança que aqui já se foi
Nos jornais, manchetes, sensação
Reportagens, fotos, conclusão:
A lua foi alcançada afinal
Muito bem
Confesso que estou contente também

A mim me resta disso tudo uma tristeza só
Talvez não tenha mais luar
Pra clarear minha canção
O que será do verso sem luar?
O que será do mar
Da flor, do violão?
Tenho pensado tanto, mas nem sei

Poetas, seresteiros, namorados, correi
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar


Ora, se esse devaneio exploratório predomina, onde fica o encantamento? É disso que falamos. O olhar astrológico ainda é encantado. Esse avanço tecnologico, presente na musica de 1967, traz um olhar exploratório, conquistador. Para onde iremos sob o jugo desse segundo olhar? Que olha, mas não vê a destruição ao seu redor? O lixo estelar que estamos criando (satélites, sondas etc etc). Há uma cena em Wall-E, fantástica, quando ele sai da Terra e atravessa um monte de entulho orbitando nosso planeta, antes de chegar no espaço sideral. Até que ponto esse lixo estelar, de nossa responsabilidade, nos diz respeito ("aquilo que está em cima é como aquilo que está embaixo")?

O que acabei de escrever está mais para reflexões meio soltas, pois acabei de conhecer música, letra e som. Não deixem de ouvi-la. Está bem bonita. Além de Gil cantando, aqui, há uma versão de Elis, pode ser ouvida aqui. A propósito, adorei o site do Gil!

Aqui, o próprio Gil comentando sua composição:

"Recebi o impacto da notícia do pouso (suave, segundo as avaliações) do Lunik 9 na lua com orgulho e ponderação: estávamos conquistando o espaço, mas aonde isso ia dar? Não era só o cidadão que especulava, mas também o artista, com o senso da responsabilidade de ser locutor da sociedade junto à história. Eu tinha que falar no assunto por isso - e também pelo sentido de competição. Havia uma disputa olímpica entre nós. 'Provavelmente alguém vai fazer música sobre isso; deixa eu fazer logo a minha', pensei.

"Lunik 9 - uma suíte com vários andamentos e atmosferas, entremeada de narração, reflexões e advertências - é uma canção pretensiosa para o grau de informação que eu tinha a respeito, mas bacana também por isso: por vulgarizar, no sentido de divulgar, traduzir, em linguagem simples, um tema em princípio complexo. Nesse aspecto, é também apócrifa, em relação aos cânones da época - embora a bossa nova já tivesse dado a abertura para temas e termos (a Rolleiflex e outras coisas); e iniciática, em relação ao meu trabalho, do qual a questão do mistério do cosmos acabou se tornando uma linha mestra.

"Mas frente ao significado do que a motivou, Lunik 9 apresentava um contraponto conservador, uma atitude ecológico-reativa, um temor exagerado da tecnologia e de que se inaugurava a possibilidade de extinção do próprio luar - da luz interior da lua. À época eu gostei de tê-la feito, mas no período tropicalista eu já achava a música boba, ingênua. Hoje em dia acho relevante aquilo ter-me ocorrido: a inspiração nasceu de uma profunda assunção de um sentido trágico de meu tempo.

"Engraçado. No momento em que escrevi 'a mim me resta disso tudo uma tristeza só', era em Orlando Silva que eu pensava. Era a defesa parcial de um mundo - romântico - que eu identificava como o do Orlando Silva, símbolo e canto de um outro tempo ainda, anterior ao meu, à própria bossa nova."  


Lunik 9, de Gil, foi também analisada aqui, por Felipe Fortuna:  A poesia, uma vez mais, se viu atacada. Num artigo publicado este mês no jornal Libération sobre o Google Street View, mencionou-se que “de renúncia em renúncia, o tempo dos poetas estará morto, o instante furtivo dos bancos públicos” desaparecerá. Será mesmo assim? A percepção fatalista dos avanços técnicos e científicos omite que a poesia se nutre, em boa parte, das relações que as sociedades estabelecem ao longo do tempo. 

E aqui também tem uma ideia bem interessante, por Marcos Nobre: Pode ser um alívio a lua deixar de ser fonte de mistério, melancolia e projeções românticas. Ao sumir do horizonte sentimental, deixa de servir de ícone da decepção amorosa mais recente e leva com ela uma tralha poética que já não tem mesmo muito a dizer. Mas, de outro lado, esse despojamento de metáforas e mitos só pode ser vivido por alguém “fatigado de mais-valia”, por quem se encontra submetido à rotina alienante do trabalho capitalista. Aqui, o que parecia estar em via de desaparecer era o encantamento da natureza. De alguma forma, a própria ciência pretendia colocar esse encantamento a seu serviço, pretendia traduzir impulsos mágicos em termos de mistérios por desvendar.

Um comentário:

Vanessa disse...

Mundo caduco esse, não?

Beijos!